Bem Vindos!



Bem Aventurados os que entram no Bosque da Lua Carmim!

Se você chegou até aqui, bem vindo!

Se foi convidado, sinta-se à vontade para sentar à volta da fogueira e ouvir As Sete Cantadoras, suas histórias, delírios e mágoas, a assistir às declamações apaixonadas de Eros e o ardor de suas palavras!

Agora, se chegou com as próprias pernas ... bem ... não se engane, por trás da dança, da bebida e da fogueira também está o covil da loba: local onde ela guarda os ossos que desenterra no escuro e lambe as feridas da carne e alma.

De qualquer forma, você está aqui, se seguiu o brilho alaranjado da lua, ou se simplesmente está perdido no escuro, olhe onde pisa e divirta-se, as histórias estão ditas para aqueles que querem ouvir.

Novamente, bem vindos.

domingo, 19 de agosto de 2018

Liberdade - O Retorno das Asas Negras


Ciclos completos


Por Mim, afinal, por quem mais seria?

Enfim, estava pronta, podia finalmente fazer este passeio, meu melhor amigo viria junto, não era nada de mais não seria muito longo também, mas a consequência seria o mais importante. 

O evento se aproximava, a roupa e a maquiagem já estavam escolhidas, os convidados e observadores se preparavam, um gigantesco par de asas brancas com um brilho amarelado como o brilho da primeira luz da manhã foi minha escolha para a minha aparição, seria como a estrela mor do dia. Eu estava feliz, tocava delicadamente as penas brilhantes, o tom de pureza e naturalidade traziam conforto aos olhos.


Foi quando descobri que não poderia ficar com aquelas asas, a familia dele não deixaria, mesmo não tendo mais nada comigo, eles não queriam que aquelas asas ficassem comigo, era belo demais, ou talvez, eles pensassem que aquilo seria mais digno deles do que de mim. Eu descobri que seriam eles que me fariam perdê-la em meio ao espetáculo. Que espetáculo? 

Eu fiquei surpresa por alguns instantes, caminhei pela exposição à céu aberto, quadros pendurados em uma ladeira. Em meio a minha caminhada eu entendi: "Eu não preciso me preocupar, eu posso perder essas asas na festa, mas eu posso usar o segundo par que veio junto, que é um par de asas negras belíssimas! Eu não vou me importar com o que os outros vão pensar". 

Em meio ao meu raciocínio ele veio de meu encontro, me pedindo milhares de desculpas por aquilo estar acontecendo, pois a família dele iria me destratar com a troca, e que ele estava preocupada com o que as pessoas iam falar ou como iam reagir, ele em especial falava alguma coisa como: eu sei que é escolha sua, e não é sua culpa que isso vai acontecer, eu não quero que você seja mal tratada. Por que eu seria mal tratada? Aquilo era quem eu era. 


É engraçado, pois foi nas entrelinhas de suas frases que eu percebi que o evento era uma festa e ritual, em que eu seria a atração principal: Queimada para entretenimento de todos, o grande espetáculo da transformação, da mutação, da saída do casulo. 


Mas mesmo com o pedido de desculpas dele, e do medo que ele sentia, e as recomendações e pedido de não usar as asas negras, eu não senti medo ou raiva alguma, eu entendia que ia ser ótimo ter a oportunidade de usar aquelas asas e até trocar de aparência um pouco. 

Eu aproveitei o pouco momento que me sobrava com as asas antigas e voei, levemente, eu vi no mesmo pacote das asas brancas as asas pretas guardadas não utilizadas e as admirei e fiquei ansiosa por elas. 



No final, a mudança gerou tantas críticas, ódio e medo nos outros quanto era prometido, mas eu não me importei, eu era outra completamente diferente, e tinha as asas negras ao meu lado, e a sensação daquilo, era como se eu tivesse voltado à ser quem eu era. As asas brancas eram belíssimas, mas eram as asas negras quem me pertenciam. Eu estava pronta para mostrar à todos quem eu era, aos poucos saí de cena e voava em direção ao evento. 

Queimei

Ardi

Virei cinzas

E se pensar bem, as asas que eu achava deveriam ser brancas, iriam se tornar negras de qualquer jeito.


sábado, 18 de agosto de 2018

4 de Copas - Arco-Íris

Outros contos roubados - 4 de Copas: O arco-íris

Ou


Quando você percebe que sofrer passa a ser uma opção após a perda.

Por Call me Eros.

Colocou os braços, um de cada lado do prato de comida. Refletiu por alguns instantes e se lembrou da obrigação imposta pela família sobre a oração agradecendo pelo alimento. Não queria desagradar a Deus.
  Imagem relacionada

Orou.

Colocou o garfo na comida e levou à boca. 

Experienciava a comida da mesma maneira como levava alguns setores de sua vida, indiferente.
Relacionamentos e sentimentos eram um exemplo claro, não dava vazão e nem valor para sentimentalismos. Toques, carinhos, afeto eram áreas desconhecidas, um imenso deserto sem oásis.

A esposa falecera anos atrás e era quem ele permitia alguma aproximação, muito embora ela entendesse o marido e não forçasse nada. Também por já ter se acostumado. Sentava no sofá, arrumava seus óculos e após uma manhã cansativa de atividades domésticas se deleitava em programas de televisão, de noticiários a programas de auditórios e vez ou outra trocavam algumas palavras, uma vez que intelectualmente sempre estiveram lado a lado, rindo das mesmas piadas e compreendendo o mundo da mesma forma. Depois, quando ele voltava para o trabalho, ela passava para a segunda parte da limpeza, até que ele chegasse ao anoitecer.
Cups04
Criaram os filhos da mesma forma, todos racionais sem que dessem grande valor para sentimentalismos exacerbados. E tiveram êxito. Ao menos pensavam assim.
Mas hoje a televisão estava desligada, a casa em silêncio e o prato, vazio.

Ouvia o vizinho esguichar água em seu jardim. Ele cuidava do próprio jardim e quando tinha tempo também do dele. As gotículas de água entraram pela janela.

Na mesa à sua frente, formou-se um arco-íris. Ergueu a mão na tentativa de tocá-lo.


Se emocionou.

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domingo, 5 de agosto de 2018

Delírios da Madrugada - Calafrios Quentes

O ArDor de uma noite solitária, ou: O que aprendi quando o desejo bate à porta em hora inoportuna?





As vezes nem a mais fria geada pode controlar o calor da maré.



                                                                 - Por RedFox, A Primeira.



A Madrugada é a única companheira, ela nunca vai negar um único gole, 
Assim como eu, nada saciará sua sede, nem todo néctar do vale
Mas no céu, a lua despontava seca e vazia.
As taças vazias que um dia brindavam hoje riem e dançam à sua frente debochando da falta do néctar quente.
Solidão é trono de mármore frio no qual sento em meio aos heróis nos Campos elísios.
Apesar do frio, dos sorrisos planejados, a mente enebriada trafega entre as memórias que ardem como labareda.
A brasa queima lentamente a velha lenha dentro do peito, aos poucos reacendendo a alma. 
O corpo torna-se a pira Beltânica, queimando vida no ventre, ardendo em brasa por entre as entranhas, vertendo o néctar no cálice.
E novamente as taças, agora cheias, sorriem, derramando o néctar no vale.
A cheia é temporária, por apenas uma noite a lua permite inspiração suficiente.
A dança cessa e o cálice seca.
E novamente o vale espera, agora não mais árido e inóspito, mas vivo e pronto para a nova vida.





Conclusões - Isso não é um Adeus,

Isso não é um Adeus,

                                                         -Por Call Me Eros


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Estou saindo da sua vida. Não é ameaça ou aviso. É constatação.

Também não é sobre decisão. Para tomar uma decisão precisamos estar cientes de escolhas a serem feitas, o que nesse caso não se aplica.

Talvez não tenha percebido ou talvez nem ao mesmo se dê conta, não acredito ser tão importante a ponto de ser perceptível minha presença ou a forma como te tratava. E definitivamente, isso não dói. Afinal, você mesmo disse não se importar, então por qual motivo eu deveria?

Também não se trata de um adeus. Não, estarei por aqui vez ou outra. Não irei desaparecer ou fugir ou qualquer coisa nesse sentido. É mais de dentro, o coração não está mais aqui. Mas relaxa, você provavelmente não vai entender, talvez nem perceber.

Podem me perguntar se houve algo que me fizesse querer isso, uma desilusão ou desentendimento ou algo nesse sentido. Não, está tudo bem. As taças estão devidamente organizadas.

Mas entenda, não há mais nada para mim aqui. Não preciso da mão que se estendia vez ou outra, também não preciso mais dos esquecimentos, atrasos e nem da falta de reciprocidade.

Entenda, não é ingratidão. Você foi e de certa forma é uma das coisas que me faz forte.

Há outros caminhos, ainda que a estrada esteja escura e não tenho muita certeza de qual o fim da viagem. Mas há algo que aprendi nas últimas paradas: não devemos permanecer onde não há mais o que crescer.

domingo, 8 de julho de 2018

Sonhos Passados - Asas Negras - A primeira aparição



Os sonhos são portais para nos encontrar com pessoas que conhecemos ou que iremos conhecer, e hoje eu lhes conto sobre o sonho que conheci você:
(Por mim) 

A Caçada


Eu estava preocupada, já fazia muito tempo que estávamos em seu encalço e não conseguíamos capturá-la, era uma traidora, ou desertora, a busca era tão antiga e tão longa que já não nos lembrávamos os motivos dela. Mas isso era indiferente, no final ela não tinha para onde correr, a fuga só prolongaria a sua dor. A cidade em que havia se escondido era um labirinto de prédios e barracos, uma mistura de favela indiana com construções marroquinas.

Eu e meus companheiros estávamos cansados, mas dessa vez eu sabia que estávamos na direção certa. Eu me ajoelho para tocar a poeira do chão, passo os dedos pelo pó e sinto sua presença, vejo os folículos brancos de suas penas - está tudo certo - o lugar é este, desta vez vamos pegá-la. Ainda de joelhos eu reparo no local, o terraço do casebre que me encontro é o mais baixo das construções locais, olhando para baixo vejo pessoas andando de um lado para o outro como formigas ocupadas, por toda a volta são visíveis construções subindo em direção aos céus desordenadamente: edifícios sem qualquer acabamento, tijolos e concretos expostos como carne viva. Alguns deles interconectados por passadiços improvisados de vergalhões e madeira, outros possuem lonas amarradas como se estivessem protegendo a visão de quem olha de cima. A visão do céu também tinha que brigar com o emaranhado de cordas e arames que estendiam os variais de roupas e itens à venda, o pouco azul que sobrava era dedicado aos pombos voando de um lado para o outro.

Sinto a presença de meus companheiros atrás de mim, suas sombras se projetam à minha frente, eu saco minha espada e olho para cima, está na hora. Ela já sabe que estamos aqui, preciso agir rápido. Respiro fundo e me preparo para a batalha, abaixo minha cabeça e permito que minha coluna fique exposta, a sensação que deveria ser lacerante não passar de sons e estalar de ossos, romper da carne e expulsão de membros, no fim, não há dor, somente alívio. Estou pronta, mais que isso, estou acostumada. As asas negras despontam de minhas costas em direção ao céu azul, brigando por espaço junto dos outros elementos da cidade, elas são grandes demais para aquele local, mas serão o suficiente para alcançá-la.

Eu olho para cima e vejo um vulto passando rapidamente por entre os prédios, asas brancas saltando em desespero - é o nosso alvo. Com um comando ordeno que os outros vão atrás dela, sem muito esforço eu salto em direção à uma armação de ferro tentando alcançar o próximo nível, e de novo, e de novo, vou em direção às asas brancas. Em certo momento, elas me notam, e começam a fugir, a perseguição acontece em meio ao emaranhado da cidade, a adrenalina latente e a sede da caçada consome meu corpo, posso sentir os músculos se enrijecerem com cada golpe lançado ao ar, o peso da espada que fatiava os céus em busca do alvo, o tremor da raiva de cada erro, a flexão das pernas com cada salto. A caçada era longa, meus outros companheiros fechavam o cerco como lobos de uma matilha, atiçando e guiando a presa para o local de abate, até que conseguimos expulsá-la para fora do emaranhado da cidade, para o céu aberto. Ela foi primeiro, voou em direção ao sol projetando sua silhueta contra a luz, impedindo que fosse reconhecida, sendo apenas perceptível o par de asas brancas contra o céu iluminado, os outros já estão em sua posições, impedindo a fuga do golpe final, e eu, como um lobo faminto, salto em sua direção, a mão direita brandindo a espada e a esquerda buscando agarrar a presa, os dedos se aproximam lentamente das plumas brancas, os batimentos são sentidos na garganta, os olhos fixos no alvo, o braço tenso pronto para golpear.


Eu acordo,

Braço esticado, punho cerrado, pernas cansadas, e coluna dolorida.

O que foi isso? Que sonho bizarro. Quem era você?
....

Doze anos depois eu ainda me lembro deste sonho como se fosse ontem, e da sua cara de surpresa ao saber quem eram as asas negras que te perseguiam pela cidade favela, da reação dele ao saber que nunca havíamos nos falado quando compartilhamos este sonho, e de nossa curiosidade do: Mas por quê?
Na minha cabeça ainda exitem dúvidas: Qual o significado disso, e quem são as presenças ao meu comando que eu conhecia tão bem? Será que eu vou um dia encontrá-los, será que eu já os conheço?

E o mais importante: Que merda você aprontou comigo?????


quinta-feira, 28 de junho de 2018

Bem Vindos ao Bosque Lua Carmim



Bem Aventurados os que entram no Bosque da Lua Carmim!

Se você chegou até aqui, bem vindo!

Se foi convidado, sinta-se à vontade para sentar à volta da fogueira e ouvir As Sete Cantadoras, suas histórias, delírios e mágoas, a assistir às declamações apaixonadas de Eros e o ardor de suas palavras!


Agora, se chegou com as próprias pernas ... bem ... não se engane, por trás da dança, da bebida e da fogueira também está o covil da loba: local onde ela guarda os ossos que desenterra e lambe as suas feridas da carne e da alma.

De qualquer forma, você está aqui: se seguiu o brilho alaranjado da lua, ou se simplesmente está perdido no escuro, olhe onde pisa e divirta-se, as histórias estão ditas para aqueles que querem ouvir.

Novamente, bem vindos.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Delírios Diurnos e seus Vapores Intoxicantes

Inebriar-se de Amor


Por Call me Eros.


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Levantou a cabeça com rapidez e olhou ao redor. O sol brilhava com força, com certa ardência na pele e a areia branca não grudava em seu corpo, a água do mar semitransparente lhe teria passado sentimentos de paz se a situação fosse outra. Seria um sonho? Levantou-se para tentar enxergar mais longe – era uma praia, atrás de si em certa distância árvores projetavam sombra fresca.

Algo começou a se levantar a partir da água. Lentamente foi se erguendo uma mulher com cabelos ruivos e pele que brilhava palidamente sob a luz do sol. Quando se aproximou pôde perceber que parte do brilho parecia vir de micro diamantes que constituíam sua tez. Na mão esquerda uma maçã que fora ofertada por Páris para a mais bela dentre 3 deusas de poder incomensurável. Na mão direita um cálice.

Colocou seus olhos verde-mar sob o rapaz ali parado atônito. Estendeu o cálice para que ele pegasse, enquanto matinha a maçã próxima à sua boca, embora impossível saber o que ela planejava, podia-se perceber levemente um ar de diversão ao seu redor.

- Pegue – Sua voz soava como se saísse das profundezas da mente do rapaz, nem ao menos parecia emitir algum som real. Estendeu as duas mãos e pegou o cálice. Não teve coragem de olhar dentro.

- Isso é medo? – Parecia intrigada e ao mesmo tempo ameaçada, como se olhasse para dentro dele e analisasse. Mais importante que a resposta, era o fato dele se dar conta do que estava acontecendo.

- É... um pouco. – disse cabisbaixo, mas ainda evitando o cálice.

- Doce criança. – Se aproximou e passou a mão em seu rosto. – A negação também é parte do caminho.

- Não quero que aconteça.

- Não?

Levantou a cabeça dele para que olhasse em seus olhos. Sentiu o verde-mar tomar conta de si, como se mergulhasse dentro dos olhos dela, não podia escapar. Viu universos rodopiando ao seu redor, pôde sentir desejos intensos e amores profundos. Sentiu a entrega, sentiu o egoísmo, toda sorte de sentimentos que juntos formavam hora tempestade, hora brisa tranquila.

Como se a neblina se dissipasse, viu a si mesmo abraçado com outro rapaz. Tudo rodopiou e se viu lhe tocando o torso nu. Mais uma vez e se viu nu e entregue aos braços do outro. E então as cenas se afastaram dele e percebeu que pareciam quadros que se movimentavam, cada um com um momento, uma passagem de uma mesma história. Contou dez ao todo. Voltou-se para o primeiro, e lá estava a mulher de pele branca e brilhante com olhos verde-mar. E se encontrou no mesmo lugar que estava antes.

- Não?

Olhou para o cálice que rodopiava um líquido semitransparente e dourado. Sentiu-se caindo no cálice.

O calor lhe preencheu por completo, por fora e por dentro e se viu em queda. Por um instante pensou em tentar se agarrar a algo ao redor e impedir que continuasse indo para o fundo, mas desistiu. O calor que lhe envolvia era intenso e confortante e não tinha motivo para tentar impedir a sensação inebriante

- Não?

- Vou me machucar quando chegar lá embaixo...

Sentiu braços se materializando ao seu redor, sentiu-se seguro e parou de cair. Abriu os olhos e viu os olhos do outro fixados nele. Estava tudo bem. Tudo ficaria bem. Sentiu seus lábios se encontrando.

- Não?

- Sim. – Tomou consciência de si novamente.

- Peça doce criança.

- Imploro... suas bênçãos Astarte dos fenícios, Ishtar dos acádios, Inanna dos sumérios, Ísis dos egípcios, Vênus dos romanos. Lhe rogo todas as bênçãos dos que se perdem por amor e dos que se encontram no que é belo. Ouça meu coração e me permita viver esse amor por completo e que assim me complete. Ó grande mãe de Eros, Himeros, Pothos e Antheros, ouça minha súplica ó Afrodite dos gregos.

Percebeu que estava ajoelhado, ainda que não soubesse como havia chegado ao chão.

No lugar onde estava a deusa restava apenas um cálice.

terça-feira, 1 de maio de 2018

A jornada dos Reis, suas passagens e ensinamentos - Anexo I

Contos da Jornada da Conquista, O Nascimento do Rei de Espadas – Capítulo 0


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O primeiro passo é sempre o mais difícil.


Triste, O rei de espadas saía dos limites das terras tão bem conhecidas por ele, olhou longamente para trás apesar de este não ser um costume. Observava cada riacho que cortavam os campos, o castelo ao longe que defendera de tantos inimigos, as tabernas as quais tanto bebera e as casas de muitos conhecidos e companheiros de batalha, em especial, se demorou na do seu velho mentor, um homenzinho nervoso e de bom coração. Riu ao lembrar-se da expressão que ele fez ao descobrir que seu discípulo havia sido honrado com o título de cavaleiro e assim, capitão do mesmo. Lembrou-se de todos os trabalhos escabrosos que recebia no começo de seu treinamento, da quantidade de cavalos e bois que teve que escovar, alimentar, limpar ferimentos, trocar ferraduras embaixo de sol e chuva, sempre sendo acompanhado de perto pelo velhote, que reclamava sem parar da forma que efetuava o trabalho, corrigindo-o e zombando, no final do dia ainda havia de ouvir “Foi tudo um teste” ou “um dia você vai me agradecer”.



- Tsc, velho sem vergonha - riu sozinho novamente.



Decidiu desvencilhar o olhar logo de uma vez “É uma viagem longa, não tenho tempo para pensar no passado”. Conforme virava o cavalo topou com sua última lembrança, as tendas de guerra, local onde ficavam os dois estrategistas mais doidos que conhecera, seu antigo General e mestre combate, “fio de prata”, e a negociante chefe de termos de invasão, “A Guilhotina” ou “A Rainha da lâmina”, os dois brigavam tanto, que por muitas vezes seus conflitos representavam mais ameaças ao reino do que os invasores em si, no final, os problemas e as brigas haviam de ser apaziguados pelos aprendizes da negociante chefe. “Outros dois pirados” – pensou - se moldavam à loucura dos outros para não se perder em sua própria, por sorte, tinham inteligência o suficiente para não sucumbir à insanidade como ocorreu com todos os outros aprendizes.



Queria desvencilhar o olhar, mas não conseguia, uma dor lacerante na garganta o fazia ficar estagnado ali, queria berrar, soltar todo ódio preso em sua garganta, livrar-se da tristeza e a mágoa de ter que partir de um lugar que amava, de abandonar os companheiros que adorava, de ter que ir embora por achar que nunca teria uma chance de conquistar tanto quanto ele terá em novas terras. Aos poucos as imagens que via ficaram turvas, havia chorado, limpou rapidamente antes que alguém, inclusive ele mesmo, pudesse perceber. Cutucou com pressa os estribos de seu cavalo e virou-se.



Partiu.



Quem sabe um dia retornaria, quem poderia negar este destino? Quem sabe um dia não será o responsável por unificar os reinos e tornar-se o um Imperador?



Até lá, boa sorte Rei de Espadas, os ventos sopram forte no litoral, aproveite os impulsos e conquiste um novo mundo.



Abraços da sua velha amiga Bruxa.




- Anexo I - Cartas à Corte - Carta de Despedida ao Rei de Espadas.


domingo, 29 de abril de 2018

A jornada dos Reis, suas passagens e ensinamentos - Capítulo 3

Oração nº 11 – A Força do fio de Prata.


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos



Adeus querida amiga

O General olhava cansado para o trono vazio, novamente não era vez a dele sentar ali, remoía silenciosamente o ódio de ter sido rejeitado: Depois de tudo que havia feito por aquela coroa maldita! O velho rei deveria tê-lo nomeado quando decidiu se retirar! Só ele seria capaz de colocar ordem no reino! Depois de tudo que ele deu! Depois de todos que ele perdeu 

Sim, depois de tudo que ele abriu mão... 

As lágrimas surgiram rápidas aos seus olhos, só as percebeu quando elas já molhavam suas mãos, travou os dentes com tanta força que ele podia os ouvir ranger em seu crânio, a sua face ficou ainda mais vermelha ressaltando os cabelos prateados que decoravam sua cabeça, num movimento feroz fechou os olhos bem apertados, forçando as lágrimas a saírem e a não voltarem a escorrer mais. 

Mas de olhos fechados, ele podia ver cada erro que cometeu que o levou ali, cada falha estratégica que custou ao reino tantos recursos, cada “conselho” que deu custando fiéis súditos e aliados tornarem-se inimigos, em busca de quê? De um trono para sentar-se? De poder? De um lugar para chamar de seu? 

- “Não” – replicou à si mesmo – “Eu mereço estar ali, depois de tantos anos de guerra e de tantas batalhas vencidas, o conselho deveria ter me reconhecido como o único capaz de preencher o lugar velho rei. Eu dancei a dança das lâminas mais vezes que tenho fios de cabelo, eu saí vitorioso sobre terras ainda não desbravadas, eu conheço esse reino como a palma de minha mão.” 

Quando abriu os olhos furiosamente, ele encontrou a bruxa cabisbaixa recolhendo o estandarte com o brasão de sua mentora com muita reverência: dobrava cuidadosamente o tecido de forma que o brasão ficasse voltado para cima, permitindo que o entrames dourados emoldurassem o brasão. Ele a viu colocando o símbolo dobrado sobre o assento da cadeira, e como se estivesse se despedindo, ajoelhou-se uma última vez aos pés daquele lugar como havia feito tantas vezes, levantou-se, fez uma reverência, pegou o tecido e foi-se, deixando a cadeira de negociante chefe vazia. Com o rabo de olho pode ver a aprendiz mais jovem da ex-negociante atrás da coluna de joelhos, atônita, com as lágrimas caindo sem parar de seu rosto. 

A cena o atingiu como uma faca no peito, realmente, de todas as perdas em sua jornada pelo trono, o que ele nunca se perdoaria foram todas as discussões e acusações que levaram à cabo a negociante chefe. A sua cabeça começou a latejar com o remorso, lembrava-se das vezes que a acusou de incompetência e de tentativa de plotar contra ele, de como sujou seu nome nas tavernas em momentos de fúria bêbada por ter planos de ataque recusados pelo conselho à orientação dela. Lembrou-se de como tentou iludir o braço direito dela com promessas de patentes em seu exército caso se juntasse à ele, e de como ele sem querer, fez a cabeça do conselho contra ela, numa inocente tentativa de trazer mais brilho à sua pessoa. 

Tudo em vão. 

Não há mais negociante chefe, não há mais aliados, não há mais súditos, seus recursos agora são limitados, e alguém que ele não conhece sentará-se na cadeira que foi dela, e ascenderia à cadeira que deveria ser dele. 

Só lhe resta a bruxa e a jovem aprendiz, caso estas não saibam como tudo aconteceu, ou caso saibam, que possa acalmar seus corações e perdoá-lo pelo o que fez sem intenção. Ele nunca quis aquilo. 

Pela janela do saguão, ele podia ver luz intensa da pira funerária levantada em homenagem à negociante chefe. A celebração havia começado, mas ele não teria coragem de ir se despedir dela. 

Ademas, ele seria o próximo, mas eles não o levariam sem luta, antes de ter seu pescoço cortado, ele levaria mais alguns com ele, mostraria à todos por que seu brasão era um leão de prata, daria a todos um espetáculo que seria cantado por gerações nas tavernas, o dia que a juba prateada do leão dançou a dança das lâminas sua última vez, e talvez com sorte, iria se redimir dos seus erros. 

Mas até lá, ele teria que ser forte, como sempre foi, afinal de contas, ele ainda não estava derrotado. 


- Contos da Jornada da Conquista, A Pira Funerária – Prólogo.



sábado, 21 de abril de 2018

Um sonho para antes de você chegar - Laço


Sabe quando você conhece uma pessoa nova, mas tem a sensação de que já conhece essa pessoa desde sempre? Às vezes nos encontramos com essa pessoa por muitos outros caminhos, seja numa outra vida ou em algum lugar de nossa mente.

Por todas as sete.


Em todas as vezes que o vi, era como um dia claro de inverno: com o azul brilhante e nuvens brancas decorando o céu, o sol amarelo ofuscando os olhos, radiando um calor gentil sobre as pessoas que andavam por entre a brisa fria.

Eu estava sentada esperando ele passar por mim, eu não sabia direito quem éramos, eu havia acabado de conhecer ele. Era uma pena que ele quisesse tanto morrer, não era bom da cabeça, sempre nos preocupando. Ficamos amigos rapidamente, andávamos por entre os jardins da escola, desvendando árvores, insetos, flores e frutos. Juntos víamos os porcos espinho de cobertura branca, parecendo de vidro caminhando pelo mato, era possível ver borboletas brilhantes e outras criaturas que nunca seriam descobertas. Um certo dia, num frágil momento ele sumiu, eu corria desesperadamente, buscava por ele num labirinto de folhagens, o labirinto era imenso; apesar de ser dia, as esquinas eram escuras e frias, quase desabei quando percebi que não poderia o encontrar, as lágrimas me vieram aos olhos. Ele me assustou propositalmente ao se revelar onde estava, o sorriso besta ao ver como minha expressão de susto se tornou raiva, ele riu, eu fiquei brava. Corremos por vários lugares e descansamos sob o sol, éramos felizes e muito jovens. Fechei os olhos respirei fundo.

Eu ria tomando minha taça de vinho provocativamente, quando abri os olhos podia fitá-lo observando atentamente as reações que ele tinha ao meus comentários e perguntas: "e o que você faz para ganhar dinheiro além de trabalhar?",  - Eu planto arroz - disse ele meio sem jeito. Eu riu novamente, com um sorriso malicioso no rosto eu pergunto: “você também vende palha de arroz?” ele ri e – “Não vendo não, tudo é muito informal”. Eu mexo no meu prato ajeitando a comida, uma brisa suave atrai minha atenção para a vista que havia da sacada: um campo de flores brancas e lilases selvagemente arranjadas, árvores soltas pelo espaço e coretos arranjados no imenso verde. Aquilo era bom, a conversa e a sinceridade, ele já era meu naquele ponto.

As ruas estavam cheia de gente, pessoas caminhando despreocupadamente. As passadiças era de pedras arranjadas tão uniformemente que não havia desnível, o cheiro era de água salobra e ar parado, as casas antigas e arruinadas mostravam o impacto da inundação que havia destriído a terra. Eu procurava por alguém, eu não sabia exatamente quem seria que eu encontraria naquela cidade, o homem era um pesquisador, ele entendi a submersa e seus segredos. Ele havia sido dado como sumido pelo governo, depois da crise que havia destruído parte da população afogada, o mundo não era um local seguro para quem defendia o mar. Em um piscar de olhos ele surge entre a multidão parado me encarando, a sensação de alivio toma conta do meu corpo, eu corro atrás dele, o seguro pelo braço e peço que ele me leve com ele, eu seria sua aprendiz e não deixaria que ele se perdesse mais, ele não estaria mais em risco com ele mesmo. Com firmeza nos olhos ele questionou: "Você tem certeza que é isso que você quer?", eu concordei, ele me arrastou pelo braço água à dentro, o mundo havia sido inundado, prédios e cidades inteiras submersas. De repente, agentes do governo nos seguem, os homens dotados de armas e equipamento de mergulho nos cercam por entre os corredores subaquáticos, a sensação é de medo e desespero, eles simplesmente não podem nos pegar! Eu me perco do pesquisador, os agentes me pegam, eles injetam em mim algo como um jato de gás garganta a dentro, e então, eu não preciso mais de equipamentos, eu percebo que posso respirar debaixo d'água. Quando isso acontece, eu agradeço os agentes, e o pesquisador aparece observando ao longe, também sem equipamento. Quando o questionei se ele sabia o porquê eles nos perseguiam, ele assentiu com a cabeça concordado que sim. Agora nosso lar seria ali, não éramos um casal, não éramos unidos romanticamente, mas não havia mais volta. Ele decidiu que me levaria à sua casa e me apresentaria os seus pais para mim: A primeira vez que estive ali a casinha era muito antiga e com um estilo rústico fascinante, remetia a algo medieval, pedra, e adobe, o chão era um misto de chão batido com azulejos de adobe pintados à mão, remetendo à algo português, ela ficava à borda da saída das águas. Havia uma capela ou um altar em quase todos os cômodos. Seus pais eram gentis, e me adulavam bastante. No dia seguinte, a casa era de madeira, mais moderna e vazia, apenas um de seus pais apareceu. No terceiro dia a casa era banca com tijolinhos à vista, eu me questionava qual a necessidade dele de mudar a casa tantas vezes, o local era sempre o mesmo, mas a casa era outra, como se colocada uma encima da outra. Nos sentamos ali e assistimos o tempo passar agora, tranquilos.

Nós éramos jovens encrenqueiros, queríamos derrubar o governo, destruir grandes instituições, trazer a justiça pelas mãos da revolução: eu treinava hamisters kamikaze, ele só queria ver o circo pegar fogo com sua influência. Após muito treinamento e tentativas falhas de dominar o mundo, dois pré adolescentes decidem comer, aparentemente minha mãe vendia comida em uma caminhonete que seria da minha avó, ela me questionava sobre minhas decisões, mas eu ria, me divertindo com a preocupação dela. Os ratos treinados iriam fazer seu papel naquela noite, quando fechava os olhos e eu pude vê-los enquanto comia, entrando por tubulações e explodindo locais e pessoas importantes, eu ria sem parar. O meu jovem parceiro aparece e me abraça. Somos Bony&Clayde, rebeldes fora da lei.

No fim, são apenas sonhos com alguém que nunca vi, mas que sempre conheci.

O conquistador do Cálice



Por Call me Eros.





Tamborilou os dedos no mousepad refletindo quais as próximas linhas a serem escritas do trabalho de conclusão de curso. O braço se apoiando na mesa e a mão esquerda segurando o rosto, os olhos passaram da tela do computador para a xícara de café frio e se detiveram na janela e no sol de fim de tarde que entrava pelas persianas.

De alguma forma estava faltando algo, um sentimento estranho de saudade misturado com uma breve ansiedade pelo encontro. Ainda que evitasse e completasse seus dias de atividades físicas e sociais, ainda sentia um pedaço de si deslocado e perdido no outro.

Seu amigo andava silencioso por aqueles dias e acabaram por ter pouco contato, o que alimentava a saudade. Se convenceu de que esse tipo de coisa acontece quando duas pessoas possuem vidas que são bem diferentes entre si, mas não mentia para si mesmo sobre o quanto não gostava dessa situação – queria ele perto, o mais perto possível. Dentro de um abraço, nos seus braços. Parou. Balançou a cabeça. Não. Levou as mãos na direção dos olhos e reclinou. Não, não, não. Esses pensamentos estranhos sobre toques e contato físico de novo não. Eram bons amigos e ele não era gay. Nenhum dos dois eram. Não fazia sentido esse desejo perverso que poderia acabar com a amizade deles. Não
A campainha tocou, tirando ele abruptamente dos devaneios que jurava serem sem sentido. Colocou uma bermuda e desceu as escadas em direção à porta e mais tarde constataria que não saberia dizer se existia mágica, mas as coincidências eram muito estranhas às vezes... como pensar em alguém e essa pessoa surgir na sua frente como se – hocus pocus – plim.

- Oi – Disse seu amigo com um sorriso estampado no rosto, segurando o skate debaixo do braço esquerdo.
- Entra – ele teria percebido sua cara de surpresa e a pontada de felicidade? Seu coração bateu mais rápido.

Passaram horas conversando sobre todas as coisas que tinham em comum, desabafos e risos. Prepararam um lanche quando estava anoitecendo e se sentaram para assistir um filme de ficção científica. Que nenhum dos dois gostava do tema, mas fazer algo junto era mais importante do que as preferências cinematográficas.

Estava entediado quando percebeu o outro dormindo ao seu lado. Decidiu por chamá-lo para deitar no colchão que colocava ao lado da sua cama, ou se ele preferisse poderia ir embora. Tocou seu ombro. Sentiu arrepio. Ficou por algum tempo com a mão parada ali.

Quando o amigo sonolento abriu os olhos, virou-se e abraçou, colocando a cabeça em seu peito. Estava dormindo? Talvez. E agora? Passou a mão em seu cabelo, lentamente, e fez um cafuné. O amigo tensionou os músculos fazendo o abraço se tornar mais forte e aparentemente percebeu que não poderia continuar fingindo estar dormindo e se preparou para desfazer aquele momento, ao que o outro o segurou ainda no abraço. Suspiros.

- Acho que estou carente.
- Tudo bem, pode ficar assim.

Se beijaram.



domingo, 15 de abril de 2018

Desespero calado - dos sonhos que nunca gostei


Abusos

Havia muito tempo que isso não me acontecia, o medo, o desespero, e o terror. Mesmo me puxaram os pés e a sensação foi tão real, mesmo quando caí dentro do mar fervendo, e quando eu respirava com os pulmões daquilo, fazia muito tempo que o sentimento era tão ruim quanto este:

RESPIRE,

SOLTE,

SORRIA,

NÃO PERCA O CONTROLE,

SEJA GENTIL, O AFASTE COM CUIDADO.

EU NÃO POSSO MAIS.

SOCORRO.

POR FAVOR,

ALGUÉM,

POR FAVOR.


A convocação veio pessoalmente, mesmo que eu fosse a última opção alguém deveria ir à Alemanha fechar o negócio. - Easy cake - , dar alguns sorrisos, puxar alguns sacos, o negócio já estava aceito, eu só levaria alguns papéis para assinatura e deveria ser simpática o suficiente para que eles não desistissem; Apesar disso, meu receio real sempre foi a maldita boca grande, ser extrovertida tem seus defeitos quando trabalhamos com informações confidenciais.

O caminho até a companhia aérea foi fácil, como uma clássica interiorana eu não havia passaporte e visto internacional, essas coisas são para gente chique das cidades grandes. As pessoas eram muito educadas comigo, as simpáticas atendentes sorriam enquanto listavam as informações que eu passava, e me orientavam calmamente como quem explica à uma criança boba. Mas algo não estava correto, mesmo que sorrissem havia amarelado nele de "cuidado" ou de "pobrezinha", o olhar era de pena e descaso.

O corredor do aeroporto era longo e em um material que lembrava um acrílico em tons de amadeirado, amarelo, marrom e dourado envelhecido, poucas pessoas estavam ali, o caminho foi silencioso, ninguém me falava o que estava acontecendo. Os olhares se abaixavam com minha passagem.
(...)

Primeiro veio o cheiro de couro tratado e de móveis bem enceirados, depois a sensação de perigo.
Eu estava sentada, aguardando a chegada deles, dois homens e uma mulher se aproximam, o mais baixinho o gorducho veio me cumprimentar, ele me abraça maliciosamente, passa a mão pelas minhas costas descendo até minha lombar, eu me sinto mal imediatamente.
- não vou reagir, se eu fizer uma cena podemos perder os clientes -, eu riu sem graça e tento sair do abraço, me viro um pouco e tento alcançar a maleta com os papéis para assinatura. Não adiantou, com uma cara pior que anterior, começa a me agarrar e passar a mão no meu corpo grosseiramente, os dedos sebosos procuravam por carne para inspeção.

O pulso acelera, a pupila dilata, - O que eu faço? Não posso dar um escândalo! Será que ele vai me soltar?-

Faço movimentos mais bruscos, lutando contra o toque horrendo, não funciona, quanto mais luto, mais a besta fica sedenta, a minha repulsa é o combustível de sua deturpação.

Entro em desespero: peço por ajuda, eu grito e me debato - Por quê eles não estão fazendo nada? - o desespero ecoa sozinho na sala - Alguém por favor me ajude, ele abusando de mim -, sem resposta - ninguém vai pará-lo.

O nó na garganta chega antes das lágrimas, não consigo sequer gritar mais, o medo e o desespero tomaram conta completamente, o prazer deles inunda a sala com um peso terrível. O outro homem ri, parecendo assistir à um siticon de tendência duvidosa, para ele nada disso era anormal, afinal de contas, não foi para isso que enviariam uma brasileira? A mulher baixa sua cabeça, não conseguia sequer olhar em nossa direção.

O instinto de sobrevivência é mais forte, eu fujo de lá após bater o suficiente para conseguir escapar das mão imundas daquele homem.
Corro sem jeito, havia de voltar para o Brasil, havia uma pessoa que deveria ser meu "guia" de volta, por sorte o encontrei fora do prédio. Mesmo em desespero ele decidiu que seria por bem parar em uma lanchonete tradicional para comermos um sanduíche, ele me acalmaria e me permitiria tirar aquilo da mente. O lugar cheirava à pão assando, carnes e defumando, molhos agridoces e cerveja fermentando; Sentando-se ao balcão podia-se ver um senhor de meia idade trabalhando em uma chapa, ele mesmo preparava os sanduíches e atendia ao clientes, o guia nos pediu uma cerveja. Antes que eu pudesse contar o que havia acontecido ele inicia um discurso sobre sí mesmo e o local que estamos visitando, pouco depois, vejo alguns conhecidos, nos surpreendemos com qual seria a probabilidade de aquilo acontecer, rimos um pouco, eu me despeço polidamente e vou ao encontro do guia novamente. O pedido não fica pronto e não sei exatamente o horário do meu vôo, o guia deveria me entregar a passagem de volta. Quando questionado se comer aquele lanche não me atrasaria para o meu vôo, ele alega que havia se esquecido disso, e disse que eu já estou para ficar atrasada, muito brava eu o chamo de irresponsável, o resultado é uma explosão de raiva desproporcional, sem tempo para discussão eu saio correndo pelas ruas contra o tempo: pego um taxi e um trem, assim consigo chegar ao aeroporto à tempo.
(...)

Os dias passam e o terror que rondava minha mente com aquele abuso diminui, eu descubro na empresa que os homens assinaram os papéis e enviaram por mala direta, ao menos não havia destruído tudo. A vergonha era grande demais para fazer um boletim de ocorrência, ou denunciá-lo para o RH.

Eu caminhava por uma praça despreocupada, repentinamente o abusador se apresenta, faz ameaças e diz que minha denúncia vai acabar com a vida dele, ele não iria permitir isso: ele ia acabar com a minha primeiro, os advogados dele iam me processar por agressão, abuso e chantagem, ele iria sumir com minhas testemunhas, além de cliente ele um influenciador de mercado, eu nunca mais conseguiria um emprego. A minha vida seria destruída.

Novamente o pulso se acelera, o suor frio do medo molha minhas mãos, o terror enche meus olhos de lagrimas, não havia pensado na denúncia, depois de tanto tempo eu seria levada à sério? Minha mente começa e viajar em mil problemas e infinitas formas de me ferrar, o choque me desconcentra da realidade. Ele veio me agredir novamente, as mãos deles prenderam meus pulsos até doer, eu senti a ardência dos calos torcendo a minha pele, dessa vez eu iria apanhar, por sorte me desvencilhei dos primeiros golpes, fugindo praça acima.

Pense, pense rápido.

Aquela ameaça me obrigava a reagir, a procurar testemunhas, e correr contra o tempo, e como eu não havia dito nada na minha empresa, iria ser taxada de mentirosa, desespero, só desespero.
Ele aparece, não será possível fugir desta vez, as mão grudam em meu pescoço, o medo e a falta de ar tomam conta do meu corpo físico.

Eu acordo.
Eu sinto dor.
Eu sinto medo.
Eu sinto o nó na garganta.
Eu não posso mais dormir.
Eu resisto, foi só um sonho.
Eu vou trabalhar.

terça-feira, 10 de abril de 2018

A jornada dos Reis, suas passagens e ensinamentos - Capítulo 2


Oração nº 1 - A trilha do Rei de Espadas

"Toda reza tem no fim um amém."
A Flor e o Navio, Capela.


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A língua é afiada como uma adaga, se não notar, ela o cortará.

O pensamento é rápido como o vento, não se prepare ele o carregará.

Não aparenta emoções, os olhos vidrados enxergam apenas o seu objetivo.

Move-se apenas em frente, atravessando tudo em seu caminho,

Não atropela ou empurra, passa por entre os obstáculos,

Os fracos e os sem estrutura vão ao chão, não resistindo à força avassaladora tal qual tempestade.

Brande orgulhosamente sua espada, a empunhadura é entalhada com o seu conhecimento e a lâmina forjada pela experiência.

Alguns diriam que se trata de um homem capaz de tudo para possuir o que quer.

Outros dirão que é frio e calculista, um homem maduro, de lábia.

Ele mesmo considera-se uma pessoa maldosa,

Mas talvez seja porque acredita demais que exista o certo e o errado, e que nem sempre o que precisa ser dito ou feito julga correto.

Há aqueles que assim como eu observa em admiração,

Contempla sem julgamentos a trilha que o guia, a motivação que o carrega e as conquistas que consegue.

O Príncipe de Gládios é coroado Rei, agora precisa de castelo e terras.

Sem olhar para trás, acena aos companheiros de tantas batalhas, como que em agradecimento.

Monta em seu cavalo, saca sua espada e cavalga rumo ao desconhecido,

Com a única certeza de que será bem sucedido.


- Contos da Jornada da Conquista, A dança das Lâminas - Introdução.

***
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(16) A última visita


Caminhava com passos firmes em direção à tenda, apesar da convicção, era possível perceber uma certa incerteza em seu semblante, algo não estava certo. Ele não era das pessoas mais abertas que conheci, na verdade, por medo de que as emoções entrassem no caminho de seus objetivos as mantinha guardadas em algum lugar de sua mente e não de seu coração, reservava elas para aqueles que julgava merecedores. Ao por-se para dentro arrumou um velho encantamento dependurado ao lado da entrada.

“Você sabia que é de mal gosto manter amuletos de repulsão ao lado da entrada ao receber visitas?”

“Eu vou jogar essa velharia fora”

“Finalmente” replicou rindo.

“Ele nunca funciona, você continua entrando”

Riram juntos.

“Eu vou partir velha amiga, vim à sua tenda pedir um último conselho às cartas” – lançou um meio sorriso e continuou como quem estivesse à se explicar – “Não há mais nada nessas terras para conquistar, toda justiça que eu poderia fazer já foi feita e aquelas que não posso corrigir me corrõem, sinto-me como um carvalho em um pequeno vaso.”

“Entendo”

Saquei as cartas enquanto ouvia suas dúvidas e expectativas, ao final disse que havia sido nomeado rei, porém para isso seria necessário conquistar um novo território, terras vizinhas porém desconhecidas.

“Parabéns pela nomeação, vejo que seu futuro será brilhante, entretanto a conquista será árdua,  os obstáculos que você não transpassou aqui serão os mesmo lá, as amarguras serão as mesmas, é como dizem, muda o teatro, mudam os personagens, porém o enredo será o mesmo. A vida tem um jeito irônico de nos obrigar a aprender as liçoes às quais fugimos”

“Não me contou novidade alguma bruxa”

“Claro que não, se bem te conheço não é possível haver algo em que você não tenha pensado. Mas lembre-se: a lealdade de amigos ainda não foi conquistada, cuidado pois há aqueles que não veem com bons olhos um novo rei de gládios”

“Obrigado pelo conselho” - levantou-se rapidamente ajeitando a espada, sem jeito não sabia exatamente como se despedir.

Foi em minha direção como se fosse beijar meu rosto. Resistiu. Assenti. Não havia necessidade, não para ele.

Não para o Rei de Espadas.


- Contos da Jornada da Conquista, A dança das Lâminas - Epílogo.

Originalmente postado em: Cap3la.blogspot.com.br

A jornada dos Reis, suas passagens e ensinamentos - Capítulo 1

A saga do Cavaleiro de Copas



Ele era como Poseidon em suas águas profundas, mesmo ferido nunca abaixava a cabeça. Quando a água do mar escorria por entre as chagas e o ardor se espalhava pelo corpo, não deixava que a angústia transparecesse à todos, sozinho em seu oceano amargurava o verter do sangue de seu corpo, com o tempo, o sangue lhe fugia demais e faltou-lhe a vida, por sorte era forte, e o sol que brilhava acima das águas o chamou com seu brilho fulguroso, estava vivo!

Lentamente a própria corrente do mar o levou à superfície, o corpo frio foi aquecido pelo sol que ardia como um tapa. Foi recuperar-se longe do mar na campina, onde não poderia descer tão fundo novamente.

Mas isso também não era bom.

A Campina era bem aventurada e pacata, mas aos poucos percebeu-se que aquele lugar era apenas uma miragem para sua mente. Ele sentia que ali não era seu lugar: sentia falta do mar frio e revoltoso, das águas profundas e geladas, apesar ficar sempre sozinho, tão sozinho...

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Mas um dia, sentado na Campina, ele viu um cavalo correr livre, as crinas ao vento, o galopar imponente, guiava seu olhos por entre um caminho, encantado por sua beleza o seguiu: corria atrás dele com tudo o que tinha, cada batida de seu coração, cada suspiro de seu peito, mas o cavalo corria, corria e corria. Até que então, sem dúvidas ou receios, o cavalo saltou pelo desfiladeiro: flutuou no ar como se não houvesse peso, os cascos castanhos dançavam e moviam-se em um balé em pleno céu, a cena que durou segundos para o cavalo desenhou na mente Dele lentamente cada detalhe tamanho a surpresa. O cavalo que já havia pousado do outro lado seguiu viajem rumo ao infinito esvaecendo-se da vista Dele.

Respirou fundo, a ânsia por seguir o cavalo era grande, mas a distância do salto também, abaixo um penhasco rochoso que levava ao fundo do mar, se caísse ali, novamente seria cortado e o mar levaria seu sangue. Se voltasse, nunca mais veria o cavalo e o seu destino final.
Pensou, pensou e pensou.

Deu às costas ao desfiladeiro, deu lugar à insegurança. Deu às costas para ao destino, deu lugar ao medo.

Passou seus dias na campina, não era o que queria.

Desceu ao fundo do mar, não era o suficiente.

Um dia cansou-se, nadou até à superfície, subiu a campina, caminhou até o pé da montanha, respirou fundo, mediu o caminho e correu, fechou os olhos e lembrou-se das paisagens que viu ao correr atrás do cavalo, sentiu novamente o ar à plenos pulmões, a emoção das batidas de seu coração agitado, a adrelina percorrer junto de seu sangue pulsante!

Abriu os olhos: e viu-se flutuando no ar lentamente, o desfiladeiro foi deixado para trás.


Fechou os olhos novamente, e esperou pousar ao chão.

Até hoje não sei se naquele momento ele conseguiu atravessar o desfiladeiro, ou se caiu no fundo do oceano e persistentemente tentou novamente, eu só sei que se fechar os olhos, posso vê-lo apaixonadamente voando acima do desfiladeiro.

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segunda-feira, 26 de março de 2018

O Mar de espinhos.


Mesmo depois da seca, da queimada e da dor, da sede do desamparo da falta de cuidado,
Depois do crescimento descontrolado, das vinhas secas, dos brotos que não vingaram,
Do medo, do enclausuro, da raiva e do ódio que nos fazem crescer espinhos,
Aos olhos menos preparados, somos o perigo, somos evitadas, somos deixadas de lado e abandonadas.
E mesmo após todo esse tempo, a primeira gota da chuva ou da lágrima, nos faz crescer novamente,
Fortes, belas, ferozes em direção às alturas!
Ainda sim com vinhas e espinhos,
Mas aos olhos bem preparados, é possivel ver o primeiro sinal da verdadeira beleza.
Do lento e gentil desabrochar.
O tímido botão se mostra pequeno e negro, saindo do meio das vinhas secas em direção ao sol.
E para aqueles que tem paciência a recompensa é grande, as vezes é necessário um pouco de ajuda: retirar os galhos secos e as folhas mortas para que se possa ver com mais clareza o que o mundo espera.
O botão floresce, o que era negro agora é carmim como o sangue, intenso e inebriante.
Ainda há aqueles que têm medo,
Ainda existem aqueles que preferem a segurança das mãos intáctas e inertes.
Porém, para os destemidos, é preferível arranhar-se e levar uma ou duas cicatrizes do que perder o suave toque da rosa.
Para que possamos sentir alguns prazeres é necessário machucar-se primeiro, perder o medo e a apatia.
Só não sabe o que é dor quem nunca se aventurou.
Mas quem nunca se aventurou, nunca viveu.
Salve a rosa,
Salve os espinhos,